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"Kurt Cobain: Montage Of Heck" é mais do que um simples documentário


Por Lucas Scaliza

A quantidade de material disponível sobre o Nirvana é gigantesca. E não são apenas arquivos, já que muita coisa continua sendo publicada e produzida quase sempre no esteio do suicídio de Kurt Cobain - que se tornou uma figura mítica do rock mundial após virar a voz de uma geração suburbana e não privilegiada. Seu suicídio ocorreu em 1994, mas até hoje o tema é explorado. As supostas motivações que levaram o jovem músico a tirar a própria vida continuam sendo tema de investigação da mídia especializada (em música) e fãs. Ainda que exista uma carta deixada por ele, ainda que existam os discos, ainda que existam uma série de questões públicas e evidentes que podem ter influenciado e sido determinantes para seu ato extremo, ainda é possível tornar a pilha de material sobre ele – e sobre o Nirvana – ainda maior.

Com direção de Brett Morgen, Kurt Cobain: Montage of Heck é uma cinebiografia do ídolo, que foi construída a partir de depoimentos de pessoas que conviveram com ele – como sua mãe, sua filha Frances Bean Cobain (que também é produtora executiva do longa), sua ex-namorada, sua ex-mulher Courtney Love e o companheiro de Nirvana Krist Novoselic - e por meio de um grande arquivo pessoal deixado por Cobain. Munido com uma série de novos documentos nunca antes mostrados ao público por sua família - como fitas cassetes com conversas e depoimentos do cantor, desenhos de quando era criança, páginas e mais páginas de diários com pensamentos sobre a vida e algumas letras de músicas - Montage of Heck é uma interessante e inédita incursão por dentro da cabeça de Kurt.

O documentário traz algumas informações que ajudam a mapear como e porquê Kurt Cobain fez as músicas que fez e tinha aquela personalidade tão ácida e instável. Embora tenha tido uma infância como qualquer outra – e o documentário é muito bem servido em registros de Kurt enquanto um menininho loiro que gostava de desenhar e era adorado pela família –, também está muito claro (segundo a construção do documentário, claro) que sua revolta começou com a separação de seus pais. Kurt simplesmente não aceitou bem ter a família dividida e cada um de seus pais constituindo um novo núcleo familiar em que ele já não era mais tão pequeno que demandasse a mesma atenção de outrora. Também passou por uma fase em que não se dava bem nem com a mãe e nem com o pai, sendo jogado de um lado para outro, de um lar (partido) para outro lar (sendo reconstruído, mas sem Kurt no centro).

Um dos aspectos mais interessantes de Montage of Heck é a forma como Brett Morgen usou linguagens heterodoxas para reconstituir pedaços da história de Kurt. Os depoimentos foram todos captados por Morgen em forma de entrevista. Muito tempo é ocupado também por filmagens caseiras que mostram a infância, os primeiros passos do Nirvana e a intimidade de Kurt, Courtney e a filha Frances. Outra boa parte da história é reconstituída por animações que dão estímulo visual a gravações de áudio deixadas por ele quase que em forma de diário e confissão. Por exemplo, há um trecho em que Kurt conta como tinha amigos de que não gostava, mas saía com eles para conseguir maconha. Como ele quase se aproveitou de uma garota aparentemente com alguma deficiência mental para poder transar pela primeira vez (ele não concluiu o ato) e como o pensamento do suicídio não era estranho para ele desde a adolescência. Tudo isso contado com o auxílio de animações. Os desenhos de Kurt e páginas e mais páginas de caderno com seus escritos, m verdadeiro tesouro para qualquer biografista, também ganham montagem e edição caprichada para preencher outro tanto do filme.

Assim, o documentário está longe de exibir uma forma tradicional, mudando a linguagem constantemente. Vídeo, fotografia, páginas de revista, entrevistas para a TV (alguns trechos que nunca foram ao ar), gravações ao vivo (incluindo show no Brasil em 1993), desenhos, animações, áudio e a própria música do Nirvana se aglutinam e se fundem para tornar Montage of Heck um documentário sério, visceral, comovente até e artisticamente bem concebido.



O documentário praticamente caiu no colo de Brett Morgen. Courtney Love foi até o diretor com a ideia em 2007. A proposta é tentadora: o primeiro filme sobre Kurt com aprovação de sua família e acesso a material muito pessoal de todos os envolvidos, incluindo canções do Nirvana que não entraram em seus três discos, o que suscitou os comentários de Morgen sobre um possível novo disco da banda ou de Kurt a partir desse material inédito.

Outro direito que Morgen conseguiu negociar é a decisão sobre o corte final do longa. Desse modo, o documentário consegue ser mais amplo e toca nas feridas todas: a adolescência problemática, o ódio que crescia dentro do jovem Kurt e as drogas. Sobre este último tema, o diretor não faz espetáculo, mas não deixa de incluí-lo sempre que é relevante, sobretudo quando chegamos à gravidez de Courtney e boa parte da imprensa resolve publicar que ela usou heroína durante a gestação e que Frances teria nascido já viciada. Em outro trecho, Krist Novoselic resume porque Kurt e Courtney davam certo: eram dois revoltados e perdidos no mundo, com tendências artísticas e inclinações autodestrutivas para as drogas. Mas nem tudo era drama: Kurt era muito brincalhão também, e o filme dá conta desse lado menos problemático e mais leve do cantor.

Os documentários de rock feitos recentemente sobre os Foo Fighters, Pearl Jam e Rush são ótimos, mas não se propõe a investigar nada e nem trazer novos olhares sobre essas bandas. Aliás, são produtos apoiados pelas bandas, que tiveram peso na hora de decidir o que entra e o que sai. Principalmente o filme sobre o Foo Fighters, chamado Back And Forth, transpira corporativismo e o controle de Dave Grohl sobre o conteúdo, algo que ele já está acostumado a fazer também com sua banda. O docudrama 20,000 Days On Earth, uma espécie de documentário ensaiado sobre Nick Cave, não é tão revelador, mas também soa mais honesto e criativo na forma como escolheu contar um dia na vida do compositor australiano. Já Lemmy, sobre o vocalista do Motörhead, segue uma fórmula bem mais tradicional, mas consegue fugir do corporativismo e apresentar uma cinebiografia autêntica. Assim, Montage of Heck é exemplar por aliar autenticidade, coragem e criatividade formal.

Com 200 horas de áudio, 4 mil páginas de diários e muitas filmagens caseiras para mostrar ao mundo um produto com 85% de imagens novas sobre o músico, Brett não tentou fazer uma captura do Nirvana e de sua música, embora a subida ao topo esteja bem representada. As mudanças causadas pela banda são suscitadas, mas não mostradas ou analisadas – afinal, já há muito material sobre isso em outras fontes. O que não se tinha até agora era uma incursão, ainda que mínima que possa ser, por dentro da mente de Cobain.

Mesmo assim, as músicas da banda estão arranjadas para ajudar a contar a história dele e dar ritmo ao filme. “Rape me”, “Heart Shaped-Box”, “Lithium”, “In Bloom”, “Come As You Are”, “Love Buzz”, “All Apologies”, “About a Girl”, “Breed”, “Come on Death” a poderosa “Territorial Pissings” e guarda “Smells Like Teen Spirit” para o final, sem falar em várias músicas de Kurt que não chegaram a ser do Nirvana.

O final dessa história nós todos conhecemos. Em 5 de abril de 1994 ele se suicida. O documentário acaba antes de relatar os momentos finais de Kurt, mas deixa os indícios necessários para tentarmos imaginar ou deduzir os porquês de sua morte. Junte as novas informações trazidas pelo documentário com o que já se sabe sobre seus últimos dias e tente compreender.

Mesmo que a morte impregne essa história, Kurt Cobain: Montage of Heck é sobre a vida.

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