Jack White oferece obra retrofuturista em seu terceiro disco solo, 'Boarding House Reach'
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| Jack White chega ao seu terceiro disco solo, "Boarding House Reach" |
Boarding House Reach, 3º disco da carreira solo do polivalente Jack White, é um trabalho que escancara algumas mudanças na música como um todo e na forma como White passa a encarar sua obra.
A primeira mais notável mudança é a inclusão de processos
digitais no acabamento das músicas. Até então, Jack White era analógico até o
talo e sentia um prazer sádico na dificuldade de, em plena segunda década do
século 21, continuar gravando todos os instrumentos em fita magnética e depois
mixar tudo sem a ajuda de programas de edição no computador. Era um tipo de
orgulho em dizer que tudo era o mais orgânico possível. Mas aí ele ouviu de
Chris Rock que “ninguém se importa” como sua música é feita, e ele percebeu que
isso realmente não faz muita diferença. Pois bem: em seu novo disco, Jack
gravou todos os instrumentos em fita, e pode apostar que usou amplificadores
valvulados, mas editou todo o material no Pro Tools, programa que Jack já disse
se tratar de “roubar” na hora de produzir música.
Além desse detalhe extremamente técnico – que para o ouvinte
realmente não faz a menor diferença, porque Boarding
House Reach é vintage nos timbres e na alma – é possível ouvir baterias
eletrônicas e efeitos adicionados digitalmente, algo até então nunca associado
a uma composição de Jack White. E antes que os mais puristas comecem a dizer
que JW se vendeu ou se rendeu, todas as adições eletrônicas são usadas com uma
sabedoria enorme e parcimônia, servindo para incrementar o retro futurismo do
álbum.
Jack sempre foi retrô, sabemos disso desde os tempos de
White Stripes. Em Lazaretto o que
ficou evidente de uma vez foi a mão única para criar canções que misturavam
rock garajeiro, rock clássico, rock noiser, blues, country e folk de uma
maneira muito própria, às vezes apagando as fronteiras entre um e outro. Mais
do que isso, ele conseguiu incluir no 2º disco uma música instrumental de
guitarra bizarra (“High Ball Stepper”) e outra que mostrava a influência do hip
hop (“That Black Bat Licorice”) pela primeira vez. Dessa vez ele coloca em sua
mistura ainda mais hip hop – que perpassa pelo menos 1/3 dos 44 minutos do
disco – e uma belíssima dose de funk setentista, fazendo uma incursão pelo
reino do Funkadelic e do Sly & The Family Stone (“Corporation”,
“Hypermisophoniac” e “Get In The Mind Shaft”). E tudo isso sem perder a própria
voz e o estilo construído desde o fim do século passado, quando ainda tocava
com Meg. “Ice Station Zebra”, rica em balanço, groove, texturas vintage e vocal
mais rappeado não me deixa mentir, deixa?
Nenhuma faixa é puramente funk ou puramente hip hop, ou
puramente blues ou puramente rock. Ainda que os timbres remetam aos anos 70,
essa mistura toda é muito contemporânea. A adição de batidas eletrônicas e
efeitos digitais, assim como mais elementos de hip hop, a vertente da música
pop mais “pop” nos EUA neste momento, faz de Boarding House Reach um produto retrofuturista. Talvez seja bom
evocar “Respect Comander” agora. Ou “What’s Done Is Done”.
Outra mudança é que White não o gravou em Nashville, onde
mora e estabeleceu a sede da Third Man Records, sua empresa/gravadora/selo. Ele
foi para Nova York e Los Angeles gravar com artistas que ainda não conhecia,
mas tinha recebido um bom feedback.
Grande parte deles era músicos de hip hop, jazz e fusion. Entregou algumas
ideias ou progressões de acordes para eles e começaram a fazer jams. Criaram
diversas versões das mesmas músicas. JW pegou todo esse material, gravado com
pessoas muito diferentes, e levou para o Pro Tools em Nashville. Lá editou
tudo, misturou gravações de uma banda com outra e fez a mágica de organizar
aquele mundo de possibilidades em algo que fizesse sentido (pelo menos para
ele).
Jack White não é nenhum novato e sabe que seu disco, por
mais diferentão que possa parecer, precisa de apostas mais seguras. E aí temos
“Connected By Love” que serve como a balada de acordes maiores e radiofônica de
Boarding House Reach e a animada
“Over And Over And Over” é o rock certeiro, com ritmo fácil de assimilar e riff
incendiário. Assim ele garante os singles para o público geral e deixa as
maiores estranhezas que surgem ao longo do disco (“Abulia and Akrasia”,
“Everything You’ve Ever Learned” e a parte final de “Humoresque”) para quem
está a fim de mergulhar no projeto de forma mais completa.
Mesmo sendo um guitar hero, do tipo que se contrapõe a
figura clássica do guitar hero, aliás, Jack White deixou que o disco tivesse
doses significativas de sintetizadores e teclados. Eles aparecem a todo
momento. Até mesmo a guitarra de JW às vezes soa como se processada para soar
como um sintetizador (“Why Walk a Dog”).
Boarding House Reach
não é o disco que ficará conhecido como o detentor dos maiores singles de Jack
White na carreira solo. Poucas faixas são realmente acessíveis ou lineares como
o grande público está acostumado. O modo de compor e de editar as músicas
gravadas serviu para que o músico saísse novamente da zona de conforto e isso
influenciou a confecção das faixas, que obedecem muito menos ao formato canção
(presente nos dois álbuns anteriores) e mais a um exercício estético. Se não é
um disco de canções, o charme de Boarding
House Reach está em ser um projeto mais audacioso, como muitos têm a
oportunidade de fazer atualmente e poucos de fato encaram o fardo de criar algo
estranho e imprevisível ao público, seja ele uma grande massa que ainda não foi
mais fundo em JW ou até mesmo os fãs de longa data.
Jack White não usava Pro Tools para remar contra a maré.
Abriu mão desse princípio e mostrou uma noção musical ainda mais alternativa do
que antes. Artista e gerente de sua própria arte, ele continua sendo uma das
peças que melhor entende o que é a música contemporânea e o que ela pode ser.
Cotação:
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